Falta de pagamento de milhões de apólices pode obrigar a ajustes na moratória
Os números são avassaladores. Em apenas um mês e meio, não foram pagas, no prazo fixado, mais de 3,3 milhões de apólices de seguros obrigatórios. Regulador dos seguros defende prolongamento do regime excepcional e o Governo admite essa possibilidade.
Os primeiros números relativos à aplicação do regime excepcional e temporário relativo aos contratos de seguro, a chamada “moratória dos seguros”, criada pelo Decreto-Lei n.º 20-F/2020, de 12 de Maio, mostram que entre 13 de Maio e 30 de Junho os portugueses falharam o pagamento de pelo menos 3,3 milhões de seguros obrigatórios (como o de responsabilidade civil
automóvel ou de protecção contra incêndio ou outros danos). No mesmo período, os tomadores de seguros (particulares e empresariais) e as seguradoras chegaram a acordo em 1,3 milhões de contratos, para a aplicação de um regime mais favorável para o seu pagamento, o que pode passar pela redução temporária do prémio (por redução do risco), pelo pagamento do prémio em data posterior à do início da cobertura, o seu fraccionamento, entre outras.
Os dados revelados pela Autoridade de Supervisão dos Seguros e Fundos de Pensões (ASF) comprovam a pressão que actualmente existe sobre as seguradoras e as dificuldades financeiras de muitos particulares, direta ou indiretamente afetados pela pandemia de covid-19. E ainda a
necessidade de eventuais ajustamentos à moratória dos seguros, como aconteceu nas do crédito, em que, ao contrário desta, já se verificaram várias alterações, entre as quais a extensão dos prazos de vigência.
Margarida Corrêa de Aguiar, presidente da ASF, já reconheceu, em declarações recentes, que “pode fazer sentido ponderar uma extensão” do regime excepcional e temporário criado pelo Governo e que cria um enquadramento jurídico mais flexível do que a lei geral que regula os seguros, em vigor até 30 de Setembro. Ao PÚBLICO o Ministério das Finanças (MF), que tutela o setor segurador, admite a possibilidade de ajustamentos ao regime. “A experiência decorrente da aplicação do diploma levará, naturalmente, a que sejam ponderados eventuais ajustamentos ao mesmo, tomando por base também os dados recolhidos pela ASF, a entidade responsável pela fiscalização do regime”, avançou fonte oficial do MF.
O MF não revela que “ajustamentos” poderão ser feitos à moratória, que, entre outras alterações, permite que as apólices de seguros continuem em vigor mesmo que o pagamento
do seguro seja dilatado no tempo, ou fraccionado, enquanto no regime jurídico do contrato de seguro (Decreto-Lei n.º 72/2008) o contrato cessa automaticamente, se o pagamento do
prémio não ocorrer na data fixada.
Seguradoras facilitam
Esta alteração é particularmente relevante nos seguros obrigatórios, em que a moratória estabelece a prorrogação das coberturas por 60 dias, no caso de falta de pagamento ou de acordo entre as partes para o estabelecimento de um regime de pagamento mais favorável para o tomador do seguro. No final dos 60 dias, prazo que já se esgotou em boa parte dos 3,3 milhões de contratos (apenas no ramo não vida) que se encontravam nessa situação, segundo os dados da ASF, os prémios terão de ser pagos, no imediato, ou, por acordo, adiados ou fracionados.
Caso contrário os contratos cessam automaticamente.
O PÚBLICO apurou que algumas seguradoras, esgotados os 60 dias, estão a dar um prazo um pouco mais alargado para a cobrança dos valores, de forma a evitar a cessação imediata das apólices.
No período em análise, a falta de pagamento de prémios em seguros obrigatórios ficou seguramente acima dos 3,3 milhões de contratos que beneficiaram do alargamento do prazo, uma vez que o tomador do seguro pode opor-se a essa prorrogação, nomeadamente quando pretende cessar o contrato para mudar de seguradora — uma opção que tem aumentado, tendo em vista a procura de melhores condições —, ou por outras motivos.
O supervisor dos seguros, mas também uma jurista da Deco Proteste, Mónica Dias, alerta para o risco de não pagamento de seguros obrigatórios: “Caso um tomador não tenha seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatório contratado (mesmo estando o veículo estacionado)
está a incumprir numa disposição legal, podendo pôr em risco os outros cidadãos, isto para além das consequências ao nível de coimas que poderá vir a ter de pagar.”
Só no seguro automóvel, em que há um maior número de contratos (4,8 milhões), foram estendidos 1,8 milhões de contratos, o que corresponde a 27,7% da carteira, seguida dos seguros de incêndio (1,1 milhões de contratos, representativos de 26,5% da carteira). Embora com um
número muito inferior (233.766), a modalidade de acidentes de trabalho liderou em percentagem a carteira de contratos prorrogados, num total de 32,6%.
Questionada pelo PÚBLICO, a ASF não revelou se a falha de pagamento dos prémios de seguro se agravou em Julho, admitindo apenas que “o diploma entrou em vigor a 13 de Maio e o
estado de emergência foi levantado a 2 de Maio, pelo que o impacto mais significativo deverá ter-se sentido antes da entrada em vigor destas medidas”.
Numa fase inicial, o conteúdo da moratória dos seguros criou algumas dúvidas em relação ao seu âmbito, nomeadamente em relação à obrigação de as seguradoras reduzirem os prémios ou mesmo devolverem prémios pagos, com base na redução dos riscos de alguns seguros, como a redução ou mesmo a não utilização do automóvel durante o período de confinamento. Apesar de nesse período se ter verificado uma redução na sinistralidade de vários seguros, tendência que já foi total ou parcialmente revertida, a moratória limita os casos em que isso pode acontecer. O que não impede, como tem acontecido, que cada seguradora passa a atribuir bónus a alguns clientes ou mesmo devolver parte dos prémios pagos.
ASF preocupada
Como destaca a ASF em resposta ao PÚBLICO, “o universo para o qual pode ser acordado entre as partes um regime de pagamento dos prémios mais favorável ao tomador do seguro não é o mesmo que pode beneficiar da aplicação de uma redução do prémio devido ao facto de as suas actividades estarem suspensas, ou terem estabelecimentos encerrados ou terem verificado uma redução substancial da actividade (quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40% da faturação)”.
Os dados divulgados pela ASF mostram que “os prémios foram reduzidos em 42 mil contratos que cobrem atividades que se encontravam suspensas ou que sofreram uma redução substancial, ou cujos estabelecimentos estavam encerrados devido medidas excepcionais e temporárias adoptadas em resposta à pandemia da doença covid-19”.
No caso destas entidades, verificou-se a devolução de parte do prémio ou fracção já pago, com estorno do valor ou abatimento em prémios futuros.
Ainda em relação à redução da sinistralidade — que genericamente representa um ganho operacional para as seguradoras —, a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) refere que “a sua evolução apenas pode ser aferida no contexto de um prazo mais alargado, e terá certamente comportamentos diferentes consoante o perfil das carteiras de seguro de cada seguradora”.
Em resposta a questões do PÚBLICO, a ASP lembra que já antes da entrada em vigor do regime criado pelo Decreto-Lei n.º 20-F/2020, as empresas de seguros estiveram “muito activas” e continuam “muito empenhadas” na resposta “às dificuldades sentidas pelos seus clientes, na busca das melhores soluções, de modo a manter em vigor a protecção conferida pelos contratos de seguro (…)”.
A jurista da Deco Proteste destaca esse empenho, materializado em várias medidas positivas para os consumidores, especialmente nos seguros de doença, com a suspensão da anulação automática das apólices ou da suspensão da actualização de preço, salvo se benéficas para cliente, ou o alargamento das coberturas e a comparticipação de testes no âmbito da covid-19.
No contexto atual, mas também dada a autonomia de cada seguradora para ajustar a sua oferta, a ASF tem deixado alguns alertas. “O contexto pós-covid-19, ao induzir a quebras de produção e deterioração da rendibilidade do negócio, vem enfatizar a necessidade de as empresas de seguros manterem políticas sãs de tarifação, de subscrição de riscos e de constituição de provisões técnicas suficientes, num ambiente de previsível competitividade acrescida”, refere na Análise de Riscos do Sector Segurador e dos Fundos de Pensões, de Agosto, em que deixa um
alerta ao sector.
Acrescenta o regulador que, “de facto, a adopção de comportamentos de underpricing e/ou de underreserving deixaria as empresas de seguros ainda mais vulneráveis à evolução dos mercados financeiros, densificando pressões sobre a sua solvabilidade e rendibilidade”.
In Público