Medicamentos só chegam “vários anos depois”

Cancro: A organização deficitária e o seu impacto na alocação de recursos, o acesso aos ensaios clínicos e a lentidão na aprovação de fármacos são apontados pelos peritos como falhas que prejudicam profissionais e doentes.

Se há algo que a pandemia deixou bem patente é o papel absolutamente decisivo da investigação clínica. A sinergia global entre diferentes entidades permitiu desenvolver uma vacina em tempo recorde e abrir novos caminhos no tratamento de doenças.
Em oncologia, a investigação é mesmo vista como um dos principais meios no combate contra o cancro, sobretudo através dos ensaios clínicos. “É uma arma muito importante, é assim que os novos medicamentos são desenvolvidos e aprovados”, explica Fátima Cardoso, diretora da Unidade da Mama do Centro Clínico da Fundação Champalimaud. “Permitem que os
doentes tenham acesso a medicamentos inovadores mais cedo, e nós a ter experiência a geri-los mesmo antes de chegarem ao mercado. Todos temos a ganhar”, defende.
Entre 2006 e 2021, os pedidos de ensaios clínicos submetidos perante o Infarmed passaram de 108 para 175, com várias subidas e descidas pelo meio, só que a situação em Portugal continua a merecer reservas. “Já estivemos muito mal e melhorámos muito, mas entretanto, nos últimos dois anos, voltámos a piorar”, acredita Fátima Cardoso.
“Demoramos tempos infindos para todas as fases de aprovação do ensaio clínico e, quando estamos prontos, o ensaio está quase a fechar.” Nos próximos ensaios internacionais “corremos o risco de não ser convidados”, e a investigadora deixa mesmo um aviso: se nada de substancial mudar em todo o processo, ficamos em vias de regressar ao que acontecia há 10 anos, altura em que “fomos quase banidos como um país desorganizado, que recrutava mal e pouco” para os ensaios, confessa.

Uma situação periclitante que, juntamente com o tempo de aprovação de novos medicamentos (“mais dois anos,
em média, do que em outros países europeus”), faz com que “os doentes em Portugal tenham acesso a medicamentos inovadores vários anos depois” do que acontece em outros territórios. “Sem investigação clínica não podemos antever opções terapêuticas mais eficazes”, resume o diretor do Serviço de Oncologia Médica do Centro Hospitalar Lisboa Norte, Luís Costa, para quem é certo que “podemos ser muito mais competitivos nesta área”. Para tal “precisamos de estruturas profissionalizadas a serem contratadas pelos hospitais”. Se, por um lado, “o SNS continua a ser o principal habitat de ensaios clínicos em Portugal e os  centros académicos são o principal motor da investigação básica e translacional”, por outro, “as instituições privadas estão a assumir um papel crescente”. No conjugar dos dois está o ganho, até porque Portugal “necessita de trabalhar mais em rede para ter uma dimensão competitiva” que beneficie mais os portugueses que sofrem de cancro.
Coordenar tudo Rui Henrique garante que “a investigação clínica no campo da oncologia em Portugal tem uma expressão que
podemos considerar reduzida comparativamente a outros países europeus, como a nossa vizinha Espanha”, sem deixar de assinalar “que tem havido uma evolução significativa ao longo dos últimos 10-15 anos” que permite ir mais ao “encontro das necessidades reais [dos doentes] experienciadas na clínica”. O presidente do IPO do Porto considera que “compete a todos participar neste esforço”, com a certeza de que “o Estado tem, certamente, um papel fundamental em diversas
ações”, como a “criação de condições objetivamente favoráveis ao desenvolvimento da investigação clínica, promovendo o investimento através de um quadro normativo que mantenha a exigência de prestação de contas,  mas permita a versatilidade e rapidez na resposta às solicitações crescentes por parte dos investidores privados”. É bom recordar, diz Vítor Rodrigues, que a “investigação não se faz só com médicos, mas sim com uma estrutura que possa dar apoio logístico e operacional”. E, na opinião do coordenador de investigação científica e bolsas da Liga Portuguesa Contra o Cancro, “não temos tido resposta dessa estrutura que nos permita entrar nos grandes ensaios clínicos internacionais”. Falta uma organização centralizada mas eficiente portanto, se bem que o responsável aponte a criação da Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB), em 2018, como um passo no sentido certo. O objetivo é “coordenar tudo”, o que é “essencial para todos trabalharmos da mesma maneira”. Algo que passa também por apostar em recursos profissionais capazes de tratar, e disponibilizar “dados de qualidade, padronizados”, que ajudem a alavancar os processos, com a certeza de que, à falta de outro estímulo, o Plano Europeu de Luta Contra o Cancro vai obrigar-nos a desenvolver estas capacidades, “se não ficamos fora da rede”.
“Tem de haver uma consciência nacional que reconheça que este processo [dos ensaios] é competitivo”, recomenda o presidente da Sociedade Portuguesa de Oncologia, Miguel Abreu, o “que significa que todos os países concorrem para ter acesso a estes estudos e que, estando nós num país periférico com escassos recursos, temos de demonstrar atratividade”.
Para estimular, Miguel Abreu apela às “associações de doentes” em Portugal para terem um papel educacional e promotor de inovação e de investigação. Quanto ao famigerado Plano Europeu de Luta Contra o Cancro, existe expectativa pela “implementação de várias medidas que tendem a desburocratizar também os procedimentos de investigação”.

 

Texto: Tiago Oliveira

Fonte: Expresso